quinta-feira, 1 de abril de 2010

Semana Santa



"Acabámos o almoço, quando um escudeiro, muito discretamente, num murmúrio, anunciou Madame d'Oriol. Jacinto pousou com tranquilidade o charuto, eu quase me engasguei, num sorvo alvoroçado de café. Entre os reposteiros de damasco cor de morango ela apareceu, toda de negro, de um negro liso e austero de Semana Santa, lançando com o regalo um lindo gesto para nos sossegar. E imediatamente, numa volubilidade docemente chalrada:

- É um momento, nem se levantem! Passei, ia para a Madalena não me contive, quis ver os estragos... Uma inundação em Paris, nos Campos Elísios! Não há senão este Jacinto. E vem no «Figaro»! O que eu estava assustada, quando telefonei! Imaginem! Água a ferver, como no Vesúvio... Mas é de uma novidade! E os estofos perdidos, naturalmente, os tapetes... estou morrendo por admirar as ruínas!
Jacinto, que não me pareceu comovido, nem agradecido com aquele interesse, retomara - risonhamente o charuto:
- Está tudo seco, minha querida senhora, tudo seco! A beleza foi ontem, quando a água fumegava e rugia! Ora que pena não ter ao menos caído uma parede!
Mas ela insistia. Nem todos os dias se gozavam em Paris os destroços de uma inundação. O «Figaro» contara... E era uma aventura deliciosa, uma casa escaldada nos Campos Elísios!

Toda a sua pessoa, desde as plumazinhas que frisavam no chapéu até à ponta reluzente das botinas de verniz, se agitava, vibrava, como um ramo tenro sob o buliço do pássaro a chalrar. Só o sorriso, por trás do véu espesso, conservava um brilho imóvel. E já no ar se espalhara um aroma, uma doçura, emanados de toda a sua mobilidade e de toda a sua graça.

Jacinto no entanto cedera, alegremente: e pelo corredor Madame d'Oriol ainda louvava o «Figaro» amável, e confessava quanto tremera... Eu voltei ao meu café, felicitando mentalmente o Príncipe da Grã-Ventura por aquela perfeita flor de Civilização que lhe perfumava a vida. Pensei então na apurada harmonia em que se movia essa flor. E corri vivamente à antecâmara, verificar diante do espelho o meu penteado e o nó da minha gravata. Depois recolhi à sala de jantar, e junto da janela, folheando languidamente a «Revista do Século XIX», tomei uma atitude de elegância e de alta cultura. Quase imediatamente eles reapareceram; e Madame d'Oriol, que, sempre sorrindo, se proclamava espoliada, nada encontrara que recordasse as águas furiosas, roçou pela mesa, onde Jacinto procurava, para lhe oferecer, tangerinas de Malta, ou castanhas geladas, ou um biscoito molhado em vinho de Tokai.
Ela recusava com as mãos guardadas no regalo. Não era alta, nem forte - mas cada prega do vestido, ou curva da capa, caía e ondulava harmoniosamente, como perfeições recobrindo perfeições. Sob o véu cerrado, apenas percebi a brancura da face empoada, e a escuridão dos olhos largos. E com aquelas sedas e veludos negros, e um pouco do cabelo louro, de um louro quente, torcido fortemente sobre as peles negras que lhe orlavam o pescoço, toda ela derramava uma sensação de macio e de fino. Eu teimosamente a considerava como uma flor de Civilização: - e pensava no secular trabalho e na cultura superior que necessitara o terreno onde ela tão delicadamente brotara, já desabrochada, em pleno perfume, mais graciosa por ser flor de esforço e de estufa, e trazendo nas suas pétalas um não sei quê de desbotado e de antemurcho.
No entanto, com a sua volubilidade de pássaro, chalrando para mim, chalrando para Jacinto, ela mostrava o seu lindo espanto por aquele montão de telegramas sobre a toalha.
- Tudo esta manhã, por causa da inundação?... Ah, Jacinto é hoje o homem, o único homem de Paris! Muitas mulheres nesses telegramas?
Languidamente, com o charuto a fumegar, o meu Príncipe empurrou para a sua amiga o telegrama do grão -duque. Então Madame d'Oriol teve um «Ah!» muito grave e muito sentido. Releu profundamente o papel de Sua Alteza que os seus dedos acariciavam com uma reverência gulosa. E sempre grave, sempre séria:
- É brilhante!
Oh, certamente!, naquele desastre tudo se passara com muito brilho, num tom muito parisiense. E a deliciosa criatura não se podia demorar, porque fizera marcar um lugar na Igreja da Madalena para o sermão!
Jacinto exclamou com inocência:
- Sermão?... É já a estação dos sermões? Madame d'Oriol teve um movimento de carinhoso escândalo e dor. O quê! pois nem na austera casa dos Trèves dera pela entrada da Quaresma? De resto não se admirava - Jacinto era um turco! E imediatamente celebrou o pregador, um frade dominicano, o Père Granon! Oh, de uma eloquência! de uma violência! No derradeiro sermão pregara sobre o amor, a fragilidade dos amores mundanos! E tivera coisas de uma inspiração, de uma brutalidade! Depois que gesto, um gesto terrível que esmagava, em que se lhe arregaçava toda a manga, mostrando o braço nu, um braço soberbo, muito branco, muito forte!
O seu sorriso permanecia claro sob o olhar que negrejava dentro do véu negro. E Jacinto, rindo:
- Um bom braço de director espiritual, hem? Para vergar, espancar almas...
Ela acudiu: - Não! Infelizmente o Père Granon não confessa!
E de repente reconsiderou - aceitava um biscoito, um cálice de Tokai. Era necessário um cordial para afrontar as emoções do Père Granon! Ambos nos precipitáramos, um arrebatando a garrafa, outro oferecendo o prato de bombons. Franziu o véu para os olhos, chupou à pressa um bolo que ensopara no Tokai. E como Jacinto, reparando casualmente no chapéu que ela trazia, se curvara com curiosidade, impressionado, Madame d'Oriol apagou o sorriso, toda séria, ante uma coisa séria:
- Elegante, não é verdade?... É uma criação inteiramente nova de Madame Vial. Muito respeitoso, e muito sugestivo, agora na Quaresma.

O seu olhar, que me envolvera, também me convidava a admirar. Aproximei, o meu focinho de homem das serras para contemplar essa criação suprema do luxo de Quaresma. E era maravilhoso! Sobre o veludo, na sombra das plumas frisadas, aninhada entre rendas, fixada por um prego, pousava delicadamente, feita de azeviche, uma Coroa de Espinhos!
Ambos nos extasiámos. E Madame d'Oriol, num movimento e num sorriso que derramou mais aroma e mais claridade, abalou para a Madalena."

A cidade e as serras, Eça de Queirós.

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