"E assim o saudável, intelectual, riquíssimo, bem acolhido Jacinto tombara no pessimismo.
E um pessimismo irritado! Porque (segundo afirmava) ele nascera para ser tão naturalmente optimista como um pardal ou um gato. E, até aos doze anos, enquanto fora um bicho superiormente amimado, com a sua pele sempre bem coberta, o seu prato sempre bem cheio, nunca sentira fadiga, ou melancolia, ou contrariedade, ou pena - e as lágrimas eram para ele tão incompreensíveis que lhe pareciam viciosas. Só quando crescera, e da animalidade penetrara na humanidade, despontara nele esse fermento de tristeza, muito tempo indesenvolvido no tumulto das primeiras curiosidades, e que depois alastrara, o invadira todo, se lhe tornara consubstancial e como o sangue das suas veias. Sofrer portanto era inseparável de Viver. Sofrimentos diferentes nos destinos diferentes da Vida. Na turba dos humanos é a angustiada luta pelo pão, pelo tecto, pelo lume; numa casta, agitada por necessidades mais altas, é a amargura das desilusões, o mal da imaginação insatisfeita, o orgulho chocando contra o obstáculo; nele, que tinha os bens todos e desejos nenhuns, era o tédio. Miséria do Corpo, tormento da Vontade, fastio da Inteligência - eis a Vida! E agora aos trinta e três anos a sua ocupação era bocejar, correr com os dedos desalentados a face pendida para nela palpar e apetecer a caveira.
Foi então que o meu Príncipe começou a ler apaixonadamente, desde o «Ecclesiastes» até Schopenhauer, todos os líricos e todos os teóricos do Pessimismo. Nestas leituras encontrava a reconfortante comprovação de que o seu mal não era mesquinhamente «jacíntico» - mas grandiosamente resultante de uma lei universal. Já há quatro mil anos, na remota Jerusalém, a vida, mesmo nas suas delícias mais triunfais, se resumia em ilusão. Já o rei incomparável, de sapiência divina, sumo vencedor, sumo edificador, se enfastiava, bocejava, entre os despojos das suas conquistas, e os mármores novos dos seus templos, e as suas três mil concubinas, e as rainhas que subiam do fundo da Etiópia para que ele as fecundasse e no seu ventre depusesse um deus! Não há nada novo sob o Sol, e a eterna repetição das coisas é a eterna repetição dos males. Quanto mais se sabe mais se pena. E o justo como o perverso, nascidos do pó, em pó se tornam. Tudo tende ao pó efémero, em Jerusalém e em Paris! E ele, obscuro no 202, padecia por ser homem e por viver - como no seu trono de ouro, entre os seus quatro leões de ouro, o filho magnífico de David.
Não se separava então do Ecclesiastes. E circulava por Paris trazendo dentro do coupé Salomão, como irmão de dor, com quem repetia o grito desolado que é a suma da verdade humana - vanitas vanitatum! Tudo é vaidade! Outras vezes, logo de manhã o encontrava estendido no sofá, num roupão de seda, absorvendo Schopenhauer - enquanto o pedicuro, ajoelhado sobre o tapete, lhe polia com respeito e perícia as unhas dos pés. Ao lado pousava a chávena de Saxe, cheia desse café de Moka enviado por emires do Deserto, que não o contentava nunca, nem pela força, nem pelo aroma. A espaços pousava o livro no peito, resvalava um olhar compassivo para o pedicuro, como a procurar que dor o torturaria - pois que a todo o viver corresponde um sofrer. Decerto o remexer assim, perpetuamente, em pés alheios... E quando o pedicuro se erguia, Jacinto abria para ele um sorriso de confraternidade - com um «adeus, meu amigo» que era «um adeus, meu irmão!»
Esse foi o período esplêndido e soberbamente divertido do seu tédio. Jacinto encontrara enfim na vida uma ocupação grata - maldizer a vida! E para que a pudesse maldizer em todas as suas formas, as mais ricas, as mais intelectuais, as mais puras, sobrecarregou a sua vida própria de novo luxo, de interesses novos de espírito, e até de fervores humanitários, e até de curiosidades supernaturais.
O 202, nesse Inverno, refulgiu de magnificência. Foi então que ele iniciou em Paris, repetindo Heliogábalo, os Festins de Cor contados na «História Augusta»: e ofereceu às suas amigas esse sublime jantar cor -de-rosa, em que tudo era róseo, as paredes, os móveis, as luzes, as louças, os cristais, os gelados, os champanhes, e até (por uma invenção da Alta Cozinha) os peixes, e as carnes, e os legumes, que os escudeiros serviam, empoados de pó rosado, com librés da cor da rosa, enquanto do tecto, de um velário de seda rosada, caíam pétalas frescas de rosas... A cidade, deslumbrada, clamou: «Bravo, Jacinto!» E o meu Príncipe, ao rematar a festa fulgurante, plantou diante de mim as mãos nas ilhargas e gritou triunfalmente: «Hem? Que maçada!...»
Depois foi o humanitarismo: e fundou um hospício no campo, entre jardins, para velhinhos desamparados, outro para crianças débeis à beira do Mediterrâneo. Depois com o major Dorchas, e Mayolle, e o hindu de Mayolle penetrou no teosofismo: e montou tremendas experiências para verificar a misteriosa exteriorização da motilidade. Depois, desesperadamente, ligou o 202 com os fios telegráficos do «Times», para que no seu gabinete, como num coração, palpitasse toda a vida social da Europa.
E a cada um destes esforços da elegância, do humanitarismo, da sociabilidade, e da inteligência indagadora, voltava para mim, de braços alegres, com um grito vitorioso: «Vês tu, Zé Fernandes? Uma maçada!» Arrebatava então o seu «Ecclesiastes», o seu Schopenhauer, e, estendido no sofá, saboreava voluptuosamente a concordância da doutrina e da experiência. Possuía uma Fé - o Pessimismo: era um apóstolo rico e esforçado: e tudo tentava, com sumptuosidade, para provar a verdade da sua Fé! Muito gozou nesse ano o meu desgraçado Príncipe!"
Eça de Queirós, A cidade e as serras
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