segunda-feira, 5 de julho de 2010

De ananases


"Gastei a noite preparando frases, cheias de profundidade e beleza, para lançar a Fradique Mendes! Tendiam todas à glorificação das LAPIDÁRIAS. E lembro-me de ter, com amoroso cuidado, burilado e repolido esta:—«A forma de V. Ex.a é um mármore divino com estremecimentos humanos!»
De manhã apurei requintadamente a minha toilette como se, em vez de Fradique, fosse encontrar Ana de Léon—com quem já nessa madrugada, num sonho repassado de erudição e sensibilidade, eu passeara na Via Sagrada que vai de Atenas a Elêusis, conversando, por entre os lírios que desfolhávamos, sobre o ensino de Platão e a versificação das LAPIDÁRIAS. E às duas horas, dentro de uma tipóia, para que o macadame regado me não maculasse o verniz dos sapatos, parava na Havanesa, pálido, perfumado, comovido, com uma tremenda rosa de chá na lapela, éramos assim em 1867!

(...)

Pela escada, o poeta das LAPIDÁRIAS aludiu ao tórrido calor de Agosto. E eu que nesse instante, defronte do espelho no patamar, revistava, com um olhar furtivo, a linha da minha sobrecasaca e a frescura da minha rosa—deixei estouvadamente escapar esta coisa hedionda:—Sim, está de escachar!
E ainda o torpe som não morrera, já uma aflição me lacerava, por esta «chulice» e esquina de tabacaria, assim atabalhoadamente lançada como um pingo de sebo sobre o supremo artista das LAPIDÁRIAS. O homem que conversara com Hugo à beira mar!...
Entrei no quarto atordoado, com bagas de suor na face. E debalde rebuscava desesperadamente uma outra frase sobre o calor, bem trabalhada, toda cintilante e nova! Nada! Só me acudiam sordidezes paralelas, em calão teimoso:— «é de rachar»! «está de ananases»! «derrete os untos»!... Atravessei ali uma dessas angústias atrozes e grotescas, que, aos vinte anos, quando se começa a vida e a literatura, vincam a alma—e jamais esquecem.
Felizmente Fradique desaparecera por trás dum reposteiro de alcova. Só, limpando o suor, considerando que altos pensadores se exprimem assim, com uma simplicidade rude,—serenei."

Eça de Queirós, A Correspondência de Fradique Mendes

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