"Cedo, de manhã, recebera, com uma carta de Madame de Trèves, um açafate de camélias, azáleas, orquídeas e lírios do vale. E foi este mimo que lhe recordou a data considerável. Soprou sobre as pétalas o fumo do cigarro e murmurou com um riso de lento escárnio:
- Então há trinta e quatro anos que eu ando nesta maçada? E como eu propunha que telefonássemos aos amigos para beberem no 202 o champanhe do «natalício» - ele recusou, com o nariz enojado. Oh! Não! Que horrível seca!... E bradou mesmo para o Grilo:
- Eu hoje não estou em Paris para ninguém. Abalei para o campo, abalei para Marselha... Morri!
E a sua ironia não cessou até ao almoço perante os bilhetes, os telegramas, as cartas, que subiam, se arredondavam em colina sobre a mesa de ébano, como um preito da Cidade. Outras flores que vieram, em vistosos cestos, com vistosos laços, foram por ele comparadas às que se depõem sobre uma tumba. E apenas se interessou um momento pelo presente de Efraim, uma engenhosa mesa, que se abaixava até ao tapete ou se alteava até ao tecto - para quê, senhor Deus meu?
Depois do almoço, como chovia sombriamente, não arredámos do 202, com os pés estendidos ao lume, em preguiçoso silêncio. Eu terminara por adormecer beatificamente. Acordei aos passos açodados do Grilo... Jacinto, enterrado na poltrona, com umas tesouras, recortava um papel! E nunca eu me compadeci daquele amigo, que cansara a mocidade a acumular todas as noções formuladas desde Aristóteles e a juntar todos os inventos realizados desde Teramenes, como nessa tarde de festa, em que ele, cercado de Civilização nas máximas proporções, para gozar nas máximas proporções a delícia de viver, se encontrava reduzido, junto ao seu lar, a recortar papéis com uma tesoura!
O Grilo trazia um presente do grão -duque - uma caixa de prat a, forrada de cedro, e cheia de um chá precioso, colhido, flor a flor, nas veigas de Kiang -Su por mãos puras de virgens, e conduzido através da Ásia, em caravanas, com a veneração de uma relíquia. Então, para despertar o nosso torpor, lembrei que tomássemos o divino chá - ocupação bem harmónica com a tarde triste, a chuva grossa alagando os vidros, e a clara chama bailando no fogão. Jacinto acedeu - e um escudeiro acercou logo a mesa de Efraim para que nós lhe estreássemos os serviços destros. Mas o meu Príncipe, depois de a altear, para o meu espanto, até aos cristais do lustre, não conseguiu, apesar de uma suada e desesperada batalha com as molas, que a mesa regressasse a uma altura humana e caseira. E o escudeiro de novo a levou, levantada como um andaime, quimérica, unicamente aproveitável para o gigante Adamastor. Depois veio a caixa do chá entre chaleiras, lâmpadas, coadores, filtros, todo um fausto de alfaias de prata, que comunicavam a essa ocupação, tão simples e doce em casa de minha tia, fazer chá , a majestade de um rito. Prevenido pelo meu camarada da sublimidade daquele chá de Kiang-Su, ergui a chávena aos lábios com reverência. Era uma infusão descorada que sabia a malva e a formiga. Jacinto provou, cuspiu, blasfemou... Não tomámos chá.
Ao cabo de outro pensativo silêncio, murmurei, com os olhos perdidos no lume: - E as obras de. Tormes? A igreja... já haverá igreja nova? Jacinto retomara o papel e a tesoura: - Não sei... Não tornei a receber carta do Silvério... Nem imagino onde param os ossos... Que lúgubre história!
Depois chegou a hora das luzes e do jantar. Eu encomendara pelo Grilo ao nosso magistral cozinheiro uma larga travessa de arroz -doce, com as iniciais de Jacinto e a data ditosa em canela, à moda amável da nossa meiga terra. E o meu Príncipe à mesa, percorrendo a lâmina de marfim onde no 202 se escreviam os pratos a lápis vermelho, louvou com fervor a ideia patriarcal:
- Arroz -doce! Está escrito com dois ss, mas não tem dúvida... Excelente lembrança! Há que tempos não como arroz-doce! Desde a morte da avó.
Mas quando o arroz -doce apareceu triunfalmente, que. vexame! Era um prato monumental, de grande arte! O arroz, maciço, moldado em forma de pirâmide do Egipto, emergia de uma calda de cereja, e desaparecia sob os frutos secos que o revestiam até ao cimo, onde se equilibrava uma coroa de conde feita de chocolate e gomos de tangerina gelada! E as iniciais, a data, tão lindas e graves na canela ingénua, vinham traçadas nas bordas da travessa com violetas pralinadas! Repelimos, num mudo horror, o prato acanalhado. - E Jacinto, erguendo o copo de champanhe, murmurou corpo num funeral pagão:
- Ad manes, aos nossos mortos! Recolhemos à Biblioteca, a tomar o café no conchego e alegria do lume."
Eça de Queirós, a Cidade e as Serras
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